quinta-feira, 25 de junho de 2020

Irreversível, filme de Gaspar Noé


“Nunca consegui terminar de ver. Acho que uma das razões pelas quais me sinto, as vezes, reticente, preguiçoso e desanimado com o cinema, e cada dia mais fascinado pela literatura, é porque nunca houve um livro que eu tenha deixado de lado por me sentir atingido em exagero pelo seu conteúdo, recursos, linguagem ou tema. Nem no linchamento de um negro, que acontece em “Luz em agosto”, de William Faulkner, eu me senti repelido, embora tenha ido às lágrimas enquanto lia. E em inúmeras cenas de outros romances dele em que negros sofrem nas mãos de brancos perversos. Mas a cena do estupro, nesse filme, impossibilita a minha experiência com a obra. Perco a capacidade de refletir sobre o que vejo, ouço, observo. Tudo me parece “cheio” demais em informação e linguagem. Essa falta de espaço para a imaginação criativa faz com que eu me sinta mais refém do diretor do que participe da obra, como no caso da literatura. Quando penso em “Folhas de relva”, de Walt Whitman, fecho os olhos e lembro de cada dia em que li cada página, e de muitas páginas eu me lembro completamente de cor. O livro me cansou muito. Mas me trouxe tanta alegria. “Graça infinita”, de David Foster Wallace, é abundante demais em informações, imagens, simbolos, mas como tudo no romance é assim, acabamos diante de um todo cheio de harmonia e plenitude. Nesse filme a sensação é a de que não havia essa harmonia, esse arranjo. A cena era feita para chocar - e choca - porque o estupro é um dos atos mais aviltantes que um ser humano pode cometer, mas o choque naquela escala para por ali, não prossegue. Os filmes que me tocam tem a harmonia de um Dante: “Andrei Rublev”, de Tarkovski, é uma especie de milagre. “Trinta anos esta noite” é um sonho com tintas de pesadelo: ninguém quer viver um dia como aquele, mas todo mundo gostaria de dizer as coisas lindas que o personagem diz. É um choque entre a lucidez da palavra e a escuridão da existência. Belíssimo. Mas esse aqui é irreversível: não funciona pra mim”. Pelo professor Carlos Augusto da Silva Rosa.

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