segunda-feira, 14 de junho de 2021

Palmeirense, até depois de morto!

"No bairro, o avô do meu amigo era sempre lembrado quando alguém batia as botas. Pra qualquer um, uma triste sina essa, não pra ele, nunca foi. Orgulhava-se. Semana passada partiu o seu Orfeu, do nada, como disse certa vez um outro: foi dormir e quando acordou, estava morto. Pois estava mesmo.

E lá foi o avô do meu amigo ser acionado pela filha do homem que cumprira seu destino até o fim com a dignidade que lhe coube. Ele não era coveiro, nem padre. Era sapateiro, no dia a dia. Nos dias especiais, como esse em que as pessoas resolviam partir, ele era estilista, consultor, psicólogo, ou algo do tipo. Preparava as vestimentas dos defuntos, vestia-os. A fama e a confiança eram tantas que aqueles que já andavam mais moribundos,  chegavam ali na entrada de sua pequena loja de esquina, puxavam um precário banquinho de madeira, e sentavam para o orientar a respeito dos detalhes do grande dia: as roupas, os sapatos, a gravata, os esconderijos... para a utilização no dia da longa viagem. Alguns também o orientavam quanto ao uso de acessórios especiais, cartas amorosas, camisas de time, fotografias e até penteados, havia nisso tudo um sigilo de confessionário.

Foi assim também com o seu Orfeu, que havia escolhido uma calça social, com sandálias e uma camisa do Palmeiras. Mas aí que está, não podia ser qualquer uma de sua vasta coleção. Era uma camisa que ganhara de presente do centroavante Evair, após um jogo do campeonato brasileiro de 1993, época áurea em que o verdão era patrocinado pela gigante Parmalat. 

Mas quando o avô do meu amigo chegou até o leito de partida do amigo, o corpo já estava endurecido, petrificado. Morreu faz tempo, sugeriu. Deve ter deitado para dormir, e logo se foi. Faz muito tempo. Está todo enrijecido, como quem contesta a situação. Está emburrado, é isso. Ora Orfeu, vamos lá, facilita o meu lado, imagino que você não estava programando partir dois dias antes da final da Libertadores com o Santos, mas a escolha não foi sua e você mal pode com ela, pior será se você continuar não colaborando e partir para o outro lado com uma camisa de botões, porque do jeito que você está apenas esse tipo de camisa entrará em você, e aqui no seu armário eu já encontrei uma, preta, da cor dos gambás. 

Jogou essa bomba em direção ao ouvido inerte do amigo desfalecido e virou pro lado, para pegar a espuma de barbear. Neste interim o avô do meu amigo apostou que o seu Orfeu pensaria seriamente na ameaça, se algo de seu ser ainda estivesse por ali, com alguma mínima autonomia sobre aquele corpo magro, alto e estático, que sobre o colchão pesava imóvel. 

Começou a passar a espuma no flácido e frio rosto do amigo e percebeu um novo ar de sarcasmo em sua face, deu-lhe um safanão no braço esquerdo, com a força necessária para impactar um membro rijo, mas quase arrancou-lhe o braço, de tão mole que estava.

Largou o barbeador no mesmo momento e aproveitou para lhe vestir as calças e a tal camisa do Evair enquanto o corpo estava ainda mole, como um pão amanhecido. Ficou com receio que o amigo, lá do outro lado, vasculhasse a sua consciência e permeasse sobre a real impossibilidade do avô do meu amigo cumprir aquela ameaça criminosa de lhe colocar, em seu derradeiro dia, uma camisa da cor dos gambás.

O seu Orfeu perdeu o gol do Breno Lopes".