sábado, 31 de agosto de 2024

A pianista de Abdellatif Laâbi

 


Na cidade devastada
a pianista continua a tocar
envolta em si mesma
sozinha
entre os escombros.

Notamos perfeitamente
que ela não se dirige a ninguém
que ela nem ouve
o que toca.

Mas a sinfonia de sua dor
espalhada ao redor dela
cria uma obra-prima
que acessa o universal.

Abdellatif Laâbi, poeta marroquino.

A fotografia é de autor(a) desconhecido(a) mas a pianista é a talentosa Thais Nicolau.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Janela de Joan Margarit


Apagada a luz, aprecio a noite.
Quase não consigo distinguir a enorme
sombra do cipreste. Há dúvida e frio.
Vênus brilha em ângulo.
Assim como aqui dentro, tudo vai congelando.
Quando alguém envelhece, muitas vezes fica
estático olhando para a noite
como quem, antes de viajar, estuda
planos de uma cidade desconhecida.

Joan Margarit (1938-2021), poeta espanhol.
Poema retirado do livro "Cálculo de Estructuras",
com primeira edição publicada pela Edicions Proa, Barcelona, 2005.

A tela intitulada "Colheita de Algodão" é do artista mineiro Gledson Franqueira Amorelli (1948)


 

domingo, 25 de agosto de 2024

Poesia de Ana Cristina Cesar


imagino como seria te amar

teria o gosto estranho das palavras que brincamos

e a seriedade de quando esquecemos quais palavras

imagino como seria te amar

desisto da ideia numa verbal volúpia

e recomeço a escrever poemas.

Ana Cristina Cesar (1952-1983), poeta carioca

Obra de arte da imensa artista Anita Malfatti (1889-1964)


sábado, 24 de agosto de 2024

Um poema de Sérgio Lima


O ato de colocar a nu o corpo da mulher é
dispor a sacralidade de sua imagem
(toda nua ela revela sua beatitude oculta)
nua
semi-aberta em si mesma obscura
as pernas separadas no grande prazer
face absoluta
do sagrado sacrilégio
da 
noite
imediata.

Sérgio Lima (1939-2024)
imenso e saudoso poeta surrealista brasileiro que nos deixou nos últimos dias.

Arte de Hector Júlio Páride Bernaró, o Carybé (1911-1997)  

domingo, 28 de julho de 2024

Poesia de José Maria Zonta


Não entres como turista no
coração de uma mulher
a bater fotos
a deixar latas de cerveja
buscando só imensas catedrais
e estátuas transparentes
com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições ligeiras

Há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração duma mulher
não bebas aí só um copo de mar
não entres no avião
toma o comboio da meia-lua
não reveles ali tuas fotos na hora
se não fizer muito frio
entra nu
não leves chapéu-de-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração duma mulher
não costumam voltar a crescer.

José Maria Zonta (1961), poeta costa-riquenho

Tela do artista mineiro Gledson Franqueira Amorelli

 

sábado, 29 de junho de 2024

Anoitecer de Simone Teodoro


Tecer o amor
Depois tecer
a dor
de o amor ter sido.
Amortecer a queda.
Amor só é suave
na subida: canção de harpa.
O inverso
é farpa.

Simone Teodoro - poeta mineira (1981)

Ao fundo tela do imenso artista paulista Agostinho Batista de Freitas (1927-1997)

 

sexta-feira, 21 de junho de 2024

O coração é como um fruto de Ana Hatherly

O coração é como um fruto

cresce

amadurece

mas não cai:

se alguém o quiser

não morre.

Ana Hatherly (1929-2015), poeta portuguesa.

Obra de arte de Inimá de Paula (1918-1999)

sábado, 25 de maio de 2024

A avó de Antônia Pozzi


Abraço-te para sentir a tua carne

cheia de paz e íntima da morte -

tão fresca e sombria

junto da minha respiração.

Para lá das palavras: escutamos

pulsações iguais - e apenas um

derradeiro sorvo de vida.

Na margem de negros lagos

volta a iluminar-se

este olho que só tu tornaste azul;

assim encostada ao teu regaço

e fechada no teu ventre

profundo, uno-me

ao teu peso mortal que se desvanece:

de tal modo que já não nos separa a terra -

mas para ambas se torna escura e leve.

Antônia Pozzi (1912-1938) - poeta italiana

Obra de arte de Amadeo Luciano Lorenzato (1900-1995)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Diospiros de Jorge de Sousa Braga


Há frutos que é preciso

acariciar

com os dedos

com a língua

e só depois

muito depois

se deixam morder.

Jorge de Sousa Braga (1957), poeta português

Arte de Dede Fedrizzi

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Ítaca de Daniel Faria


O que dói

é não poder apagar a tua ausência

e repetir dia após dia os mesmos gestos.


O que dói

é o teu nome que ficou como mendigo

descoberto em cada esquina dos meus versos.


O que dói

é tudo e mais aquilo que desteço

ao tecer para ti novos regressos.

Daniel Faria (1971-1999), poeta português

Arte de Antônio Maia (1928) 

sexta-feira, 15 de março de 2024

Infância de Carlos de Oliveira


Sonhos

enormes como cedros

que é preciso

trazer de longe

aos ombros

para achar 

no universo da memória

este rumor

de lume:

o teu perfume,

lenha 

da melancolia.

Carlos de Oliveira (1921-1981), poeta português, nascido em Belém do Pará

Obra de arte de Amadeo Luciano Lorenzato, artista mineiro 


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Conselho de Eugénio de Andrade


Conselho

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda
como um fruto
ao passar o vento
que mereça.

Eugénio de Andrade (1923-2005), poeta português

Arte de Aldemir Martins (1922-2006)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Um aforismo de Jean Cocteau


"Eu sei que a poesia é imprescindível, só não sei para o quê."

Jean Cocteau (1889-19963), poeta e romancista francês.

Belíssima paisagem do artista cearense Aldemir Martins (1922-2006)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Um aforismo de Manuel de Freitas


"Os poemas são como o mundo: não rimam".

Manuel de Freitas, poeta português

Belíssimo pássaro do artista Aldemir Martins (1922-2006)

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Envelhecer de José Gomes Ferreira


(Diante de um espelho)

Envelhecer é este frio de flor seca. Caverna desabitada.
com um figura ao centro, a arrefecer devagar.

- tempo

sem altar onde os frutos já não transformam
a magia do sol em sumo.

E os ponteiros de cinza
dos relógios
em vez de aquecerem o tempo
desfazem as horas em fumo.

José Gomes Ferreira (1900-1985), poeta português

Belíssima tela do artista gaúcho Glênio Bianchetti (1928-2014)

 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Tréguas de Eunice de Souza


Este poema é para ti.

É uma oferta de tréguas

dizendo que

nada no teu coração negro

me poderá assustar.

Olhei tempo demais

para o meu próprio coração.

Obrigada pela dádiva

das tuas incertezas.

Eunice de Souza (1940-2017), poeta indiana

Obra de arte de Waldomiro de Deus

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Despedir-se de Joan Margarit


Retirei tapetes de cortinas,
as mesas nas quais há muito não como nem escrevo.

Tirei os quadros e pintei os muros
para apagar as marcas de tantos anos.

Guardei alguns livros. Sei bem quais.
Destruí cartas de amor.
Silenciosos, os amores
são agora icebergs errantes dos pensamento.

A casa, sem recantos para o medo,
despe-me os olhos. Nem a esperança
perturbará a última morte.

Outra casa não há para os que amo.

Joan Margarit (1938-2021), poeta espanhol

Obra de arte, um Dom Quixote, do artista mineiro Gledson Franqueira Amorelli

 

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A Despedida de Bertolt Brecht


Nós nos abraçamos.

Eu toco um tecido fino
você toca um tecido barato.

O abraço é ligeiro.

Você vai para um jantar.

Eu fujo dos carrascos que me seguem.

Falamos de tempo e da nossa inabalável amizade.

Todo o resto seria amargo demais.

Bertolt Brecht (1898-1956), poeta e dramaturgo alemão

Maravilhosa tela do artista paulista Clóvis Graciano (1907-1988) 

 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Instruções de Linda Pastan

 


Você deve embalar sua dor em seus braços
até que ela durma, e depois deixá-la
em seu quarto já escuro
e sair nas pontas dos pés.

Por um momento, você sentirá 
o vazio que a paz traz.

Mas no quarto ao lado
sua dor já está se agitando.

Em breve, estará
chamando seu nome.

Linda Pastan (1932-2023), poeta norte-americana

Desenho do artista cearense Aldemir Martins

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Como foi curta a noite de Abelardo Linares

 

 
Cheiram a ti os lençóis, meu amor, e ainda
está aberto em cima da mesa o teu livro
e há roupa pelo chão e discos e tabaco.
 
Embora já não estejas aqui, os meu braços ainda te procuram.
E neste fingimento de abraçar-te na almofada
persigo a tua lembrança, a tua cintura, os teus ombros.
 
O teu corpo não foi um sonho e talvez na casa de banho
a minha escova me espere, molhada pela tua boca,
ou húmidas toalhas que secaram o teu cabelo.
 
Cheiram a ti os lençóis. O quarteirão desperta.
Há vozes na rua e luz detrás da persiana.
Deve ir alto o sol. Como foi curta a noite.
 
Abelardo Linares (1952), poeta espanhol
Trípticos Espanhóis 1º
tradução de Joaquim Manuel Magalhães
Relógio d´Água
 1998

Tela do imenso artista italiano Amadeo Mondigliani (1884-1920)