quinta-feira, 29 de junho de 2023

Você está pronto para amar? de Abdellatif Laâbi

Você está pronto para amar

sem conhecer o final da história

sem perguntar pelo nome

a proveniência ou o destino?

Amar baixando os olhos

sem devorar a mão que aperta

sem fogo ou contra fogo

de desejos nem ultrajes.

Amar de perto

e mais ainda de longe.

Amar como respirar

sem defesa nem colete salva-vidas

na fogueira das purificações

e sob a tempestade das paixões inconfessáveis?

Está preparado para viver

desse amor

de água fresca

e plumagem de pássaro ordinário

ardendo no fogo da utopia

do qual não se sabe

se restarão cinzas?

Abdellatif Laâbi - (1942) - imenso poeta marroquino.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Intimidade e Sonho de Al-Mu'tamid

 

partilhavas o meu leito nesse sonho,

o teu braço macio era a almofada

e com a paixão da insônia me enlaçavas,

eu beijava-te a boca, a nuca a face

antes de, enfim te possuir.


pelo teu amor!

se não me trouxesse o sonho a tua imagem

jamais experimentaria o sabor do sono!


Al-Mu'tamid (1040-1095) - o rei poeta de Sevilha.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Órfãos da eternidade de Charles Simic


Uma noite você e eu caminhávamos

A lua estava tão clara

Que podíamos ver a trilha sob as árvores

Então as nuvens vieram e a esconderam

E tivemos que tatear o caminho

Até sentir areia sob os pés descalços

E ouvir as ondas quebrando.


Lembra que você me disse:

"Tudo fora deste momento é uma mentira"?

Nos despíamos no escuro

Bem na linha da água

Quando tirei meu relógio do pulso

E, sem ser visto ou dizer

Nada em resposta, joguei-o no mar.

Charles Simic (1938-2023) - poeta norte-americano nascido na Sérvia.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

O amor depois do amor de Derek Walcott

Virá o tempo

quando, com euforia,

você vai saudar a si mesmo chegando

à sua porta, diante do seu espelho,

e sorrindo um dará ao outro as boas-vindas,

e dirá: sente-se aqui. Coma.

Você amará novamente o estranho que era você.

Ofereça vinho. E pão. Devolva o seu coração

para si mesmo, para o estranho que te amou

por toda a sua vida, a quem você ignorou

mas que te conhece de cor.

Recolha as cartas de amor na estante,

as fotografias, as anotações de angústia,

descole sua imagem do espelho.

Sente-se. Celebre sua vida.

Derek Walcott (1930-2017) - nascido nas Antilhas, vencedor do Nobel de Literatura de 92.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Acontecimento de Albano Martins

Tu choravas e eu ia apagando

com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas

- riscos na areia mole e quente do teu rosto.

Choravas como quem se procura.

E eu descobria mundos, inventava nomes,

enquanto ia espremendo com as mãos

o meu sangue todo no teu sangue.


Não sei se o mundo existia e nós existíamos, realmente.

Sei que tudo estava suspenso,

esperando não sei que grave acontecimento

e que milhares de insectos paravam e zumbiam nos meus sentidos.

Só a minha boca era uma abelha inquieta

percorrendo e picando o teu corpo de beijos.


Depois só dei pela manhã,

a manhã atrevida,

entrando devagar, muito devagar e acordando-me.

Desviei os meus olhos para ti:

ao longo do teu corpo morriam as estrelas.

A noite partira. E lentamente,

o sol rompeu no céu a tua boca.


Albano Martins (1930-2018) - poeta português.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Creio nos anjos de Natália Correia


Creio nos anjos que andam pelo mundo,

creio na deusa com olhos de diamantes,

creio em amores lunares com piano ao fundo,

creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,


Creio num engenho que falta mais fecundo

de harmonizar as partes dissonantes,

creio que tudo é eterno num segundo,

creio num céu futuro que houve dantes,


Creio nos deuses de um astral mais puro,

na flor humilde que se encosta ao muro,

creio na carne que enfeitiça o além,


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

na ocupação do mundo pelas rosas,

creio que o amor tem asas de ouro.


Natália Correia (1923-1993) - escritora e poetisa portuguesa

sábado, 3 de setembro de 2022

Manhã de Murilo Mendes


As estátuas sem mim não podem mover os braços.

Minhas antigas namoradas sem mim não podem amar seus maridos.

Muito versos sem mim não poderão existir.

É inútil deter as espirações da musa.

É difícil não amar a vida.

Mesmo explorado pelo homens.

É absurdo achar mais realidade na lei que nas estrelas.

Sou poeta irrevogavelmente.

Murilo Mendes (1901-1975) - critico de arte e poeta brasileiro.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Soneto do amor total de Vinícius de Moraes


Amo-te tanto, meu amor... não cante

O humano coração com mais verdade...

Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade


Amo-te afim, de um calmo amor prestante,

E te amo além, presente na saudade.

Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.


Amo-te como bicho, simplesmente,

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.


E de te amar assim muito e amiúde,

É que um dia em teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinícius de Moraes (1913-1980) - imenso poeta brasileiro.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Quem és tu de Cruzeiro Seixas


Quem és tu que assim vens pela noite adiante

pesando o luar branco dos caminhos

sob o rumor das folhas inspiradas?


A perfeição nasce dos teus passos

e a tua presença acorda a plenitude

a que todas as coisas tinham sido destinadas.


A história da noite é o gesto dos teus braços

o ardor do vento na sua juventude

e o teu andar é a beleza

de todos os caminhos.

Cruzeiro Seixas (1920-2020) - poeta e imenso artista surrealista português.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Cartografias de Ana Martins Marques

E então você chegou

como quem deixa cair

sobre um mapa

esquecido aberto sobre a mesa

um pouco de café uma gota de mel

cinzas de cigarro

preenchendo

por descuido

um qualquer lugar até então

deserto.

Ana Martins Marques (1977) - poeta brasileira, nascida em Minas Gerais.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Relatos de viagem ao Brasil da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen em 1966


"Quem vai do Rio a Brasília em geral toma avião. Mas o avião é uma máquina abstrata que resume as distâncias, sintetiza as montanhas, geometriza os campos. Os países ficam reduzidos a cidades e perdem a ligação consigo próprios. Muito cômodo, mas pouco existencial. Eu queria viajar perto da terra para a ver bem, para ouvir a sua voz e o seu silêncio, para sentir a sua respiração e seu perfume.

A viagem de automóvel do Rio a Brasília não me pareceu comprida porque eu ia à procura da distância. A distância não era um contratempo, mas sim um valor em si mesmo. Noutras viagens fui "ver terras". Ao Brasil vim "ver a terra", vim ver desdobrar-se o tamanho da terra.

Adorei o Brasil - adorei as praias enormes, as praias de areia e seda e o mar de água levíssima quese gasosa e os montes azuis e as palmeiras e os coqueiros, e o perfume roxo de Ártemis. E adorei as pessoas e a simpatia e simplicidade das pessoas. O Manuel Bandeira e o Carlos Drummond de Andrade receberam-me como uma irmã que vem de longe."

Trechos dos relatos da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen sobre viagem ao Brasil, a convite do Governo Brasileiro, no ano de 1966, em matéria do poeta brasileiro Eucanaã Ferraz para a Revista Piauí N_159.

domingo, 22 de maio de 2022

A solidão pelo professor Jelson Oliveira


"É preciso que cada indivíduo se cultive na solidão para que adquira esse sentimento de distância e estabeleça, a partir de um amor a si, a condição para a expansão das forças vitais lato sensu."

"O homem que sofre de abundância de vida é capaz de levar a doença até suas últimas consequências e dela retirar os remédios para sua própria cura."

Trechos retirados do livro "A Solidão como Virtude em Nietzsche" do professor Jelson Oliveira. 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

É preciso ter um lugar por Cesare Pavese


"É preciso ter um lugar, nem que seja pelo gosto de ir embora. Um lugar quer dizer não estar sozinho, saber que nas pessoas, nas plantas, na terra há algo de seu, que, mesmo quando você não está, fica esperando por você."

Trecho do livro "A Lua e As Fogueiras" do escritor e poeta italiano Cesare Pavese. 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Trechos de poemas de Herberto Helder


Trechos de poesias pinçadas de livros do imenso poeta português Herberto Helder:

"Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue."

"Beberei a sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte."

"Meu desejo traz o perfume da tua noite."

"Um poema cresce inseguramente na confusão da carne."

"Há sempre uma noite terrível para quem se despede do esquecimento."

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Infância por Louise Glück e Manuel de Freitas

 

"Nós vemos o mundo uma única vez, na infância. O resto é memória."

Louise Glück

"Pode-se fugir de tudo, menos da infância."

Manuel de Freitas

terça-feira, 3 de maio de 2022

Trechos de poemas de Antônio Franco Alexandre


Alguns trechos de poesias pinçadas de livros do poeta português Antônio Franco Alexandre:

"Venha comigo ver os nunca vistos desastres do jamais acontecido."

"O corpo em vão mastiga sede e sangue."

"Não julgues que me importam as roldanas do tempo no teu corpo."

"Vou dizer o que sei como quem mente."

"Já tudo te permites mesmo o espanto."

"Há um lugar incerto onde aconteço."

"Quando começa a ser poema, a frase destoa do veludo."

"Entre as folhas do ar o chão respira."

domingo, 17 de abril de 2022

segunda-feira, 21 de março de 2022

O degrau por Aldous Huxley


"O degrau da escada não foi inventado para repousar, mas apenas para sustentar o pé o tempo necessário para que o homem coloque o outro pé um pouco mais alto."

Aldous Huxley